Puisias & Afins

04 septiembre, 2008

Tabacaria

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa,
desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer.
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até o campo com grandes propósitos,
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonhos gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas-,
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas-,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrama-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso, e ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, sem rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê de moderno
- não concebo bem o quê-,
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar, que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invoco a mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei, e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um dos andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto, remexidamente.

Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino me conceder, continuarei fumando.


(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.

O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
( O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus, ó Esteves! , e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.

"Álvaro de Campos"

11 agosto, 2008

Mistério do Planeta

Vou mostrando como sou e vou sendo como posso. Jogando meu corpo no mundo, andando por todos os cantos.

E pela lei natural dos encontros, eu deixo e recebo um tanto. E passo aos olhos nus ou vestidos de lunetas.

Passado, presente, participo sendo o mistério do planeta.

O tríplice mistério do "stop", que eu passo por e sendo ele no que fica em cada um.

No que sigo o meu caminho e no ar que fez e assistiu. Abra um parênteses, não esqueça que independente disso eu não passo de um malandro. De um moleque do Brasil, que peço e dou esmolas.

Mas ando e penso sempre com mais de um, por isso ninguém vê minha sacola.


Galvão - Moraes Moreira

10 agosto, 2008

La vida es más compleja de lo que parece

El velo semitransparente
del desasosiego
un día se vino a instalar
entre el mundo y mis ojos...
Yo estaba empeñado en no ver
lo que vi, pero a veces
la vida es más compleja de
lo que parece.

Pensaste que me iba a quebrar
y subiste tu apuesta,
me hiciste sentir el sabor
de mi propia cocina.
Volví a creer que se tiene
lo que se merece,
la vida es más compleja de
lo que parece.

Todas las versiones
encuentran sitio en mi mesa.
Todas mis canciones
por una sola certeza.

No quiero que lleves de mi
nada que no te marque.
El tiempo dirá si al final
nos valió lo dolido...
Perderme, por lo que yo vi
te rejuvenece,
la vida es más compleja de
lo que parece.

Mejor, o peor, cada cual
seguirá su camino.
Cuánto te quise, quizás,
seguirás sin saberlo.
Lo que dolería por siempre,
ya se desvanece,
la vida es más compleja de
lo que parece.

Jorge Drexler

08 agosto, 2008

Minha Casa

é mais fácil cultuar os mortos que os vivos
mais fácil viver de sombras que de sóis
é mais fácil mimeografar o passado
que imprimir o futuro
não quero ser triste
como o poeta que envelhece
lendo maiakóvski na loja de conveniência
não quero ser alegre
como o cão que sai a passear com o seu dono alegre
sob o sol de domingo
nem quero ser estanque
como quem constrói estradas e não anda
quero no escuro
como um cego tatear estrelas distraídas

amoras silvestres no passeio público
amores secretos debaixo dos guarda-chuvas
tempestades que não param
pára-raios quem não tem
mesmo que não venha o trem não posso parar

vejo o mundo passar como passa
uma escola de samba que atravessa
pergunto onde estão teus tamborins
pergunto onde estão teus tamborins
sentado na porta de minha casa
a mesma e única casa
a casa onde eu sempre morei

zeca baleiro

04 agosto, 2008

vivo

Precário, provisório, perecível;
Falível, transitório, transitivo;
Efêmero, fugaz e passageiro
Eis aqui um vivo, eis aqui um vivo!

Impuro, imperfeito, impermanente;
Incerto, incompleto, inconstante;
Instável, variável, defectivo
Eis aqui um vivo, eis aqui...

E apesar...
Do tráfico, do tráfego equívoco;
Do tóxico, do trânsito nocivo;
Da droga, do indigesto digestivo;
Do câncer vil, do servo e do servil;
Da mente o mal doente coletivo;
Do sangue o mal do soro positivo;
E apesar dessas e outras...
O vivo afirma firme afirmativo
O que mais vale a pena é estar vivo!

É estar vivo
Vivo
É estar vivo

Não feito, não perfeito, não completo;
Não satisfeito nunca, não contente;
Não acabado, não definitivo
Eis aqui um vivo, eis-me aqui.

Lenine/Carlos Rennó

22 julio, 2008

Sidarta

(...)

“Serenamente, o Buda fitava o chão. Placidamente, com perfeita impassibilidade, luzia o rosto inescrutável.

- Oxalá- disse lentamente o Venerável- que teus pensamentos não sejam erros! Que te seja permitido alcançar teu destino! Mas, dize-me: Viste a multidão de meus samanas, o sem-número de meus irmãos, que se agasalharam na minha doutrina? E achas, ó samana forasteiro, achas realmente que seria melhor para todos eles que abandonassem a doutrina e regressassem à vida do mundo e dos prazeres?

- Longe de mim pensar semelhante coisa- exclamou Sidarta. – Que eles continuem fiéis à tua doutrina e realizem seus propósitos! Não me cumpre julgar a vida de outrem. Devo opinar, escolher, rejeitar unicamente no que se refere a mim mesmo. Nós, os samanas, procuramos a redenção do eu , ó Augusto. Ora, se eu fosse um dos teus discípulos, ó Venerável, poderia acontecer-me... assim receio... que meu eu só aparentemente, falazmente, obtivesse sossego e redenção, mas na realidade continuasse a viver e crescer, uma vez que eu teria então a tua doutrina, teria o fato de ser teu adepto, teria meu amor a ti, teria a comunidade dos monges e faria de tudo isso o meu eu.

Esboçando um meio sorriso, Gotama contemplava o forasteiro com inabalável clareza e bondade. A seguir, despedindo-o com um gesto quase imperceptível, disse o Augusto:

- És inteligente, ó samana. Sabes falar inteligentemente, mas, meu amigo, acautela-te contra o excesso de inteligência! “

(...)

Hermann Hesse

18 julio, 2008

Junho

Eu sei que é junho, o doido e gris seteiro
Com seu capuz escuro e bolorento
As setas que passaram com o vento
Zunindo pela noite, no terreiro
Eu sei que é junho...

Eu sei que é junho, esse relógio lento
Esse punhal de lesma, esse ponteiro,
Esse morcego em volta do candeeiro
E o chumbo de um velho pensamento

Eu sei que é junho, o barro dessas horas
O berro desses céus, ai, de anti-auroras
E essas cisternas, sombra, cinza, sul

E esses aquários fundos, cristalinos
Onde vão se afogar mudos meninos
Entre peixinhos de geléia azul
Eu sei que é junho...

Alceu Valença

"A Vaca e o Hipogrifo"

Clarividência
"O poema é uma bola de cristal. Se apenas enxergares nele o teu nariz, não culpes o mágico."

Ingenuidade
"Mas que monótona não deveria ser a vida amorosa de Don Juan! Ele pensava que todas as mulheres eram iguais..."

Parêntesis
"(Em meio ao turbilhão do mundo
O Poeta reza sem fé)"

Comunhão
"Há anjos boêmios que costumam freqüentar esses antros noturnos que são os sonhos dos humanos. São estes que finalmente intercedem por ti. O resto, é dedo-duro."

A Revelação
"Um bom poema é aquele que nos dá a impressão de que está lendo a gente... e não a gente a ele!"

Uma frase para álbum
"Há ilusões perdidas mas tão lindas que a gente as vê partir como esses balõezinhos de cor que nos escapam das mãos e desaparecem no céu..."

Madrigal
"Ponhamos as coisas no devido lugar. Eu não faço versos a ti: eu faço versos de ti..."

Mario Quintana

Down em mim

Eu não sei o que o meu corpo abriga
Nestas noites quentes de verão
E nem me importa que mil raios partam
Qualquer sentido vago de razão
Eu ando tão down
Eu ando tão down

Outra vez vou te cantar, vou te gritar
Te rebocar do bar

E as paredes do meu quarto vão assistir comigo
À versão nova de uma velha história
E quando o sol vier socar a minha cara
Com certeza você já foi embora
Eu ando tão down
Eu ando tão down

Outra vez vou te esquecer
Pois nestas horas pega mal sofrer

Da privada eu vou dar com a minha cara
De babaca pintada no espelho
E me lembrar, sorrindo, que o banheiro
É a igreja de todos os bêbados
Eu ando tão down
Eu ando tão down..


Cazuza