os despertos...
"(...) Acostumei-me a ver Isabela como a personagem principal. Fui seu contraponto em todos os momentos em que estivemos juntos: eu era a sombra, o vaso das flores, a margem do lago. Cabia a ela a cor e o sonho - eu era o rascunho.
Mas então tudo se transformou, e a vida passou a exigir-me o fôlego que nunca tive. Dei-me a vaguear sem rumo e entreguei meus sábados a um bar antigo, bebendo entre figuras desconhecidas. Convidado pela curiosidade,passei a freqüentá-lo habitualmente, e dali fiz meu palco e teatro, encenando um papel secundário e sem importância, em um inquebrantável silêncio engasgado.
Os sábados, para mim, sempre representaram o encerramento de uma etapa. O bar era um abrigo, uma passagem obrigatória que providenciava avaliar o fluxo das coisas. Era uma espécie de instrumento que permitia medir o tamanho da minha solidão. Além do mais, era o lugar perfeito para dar vazão à minha incansável necessidade de compreender-me. Tinha comigo uma visão clara das cicatrizes profundas que cada homem carregava, talhadas pela vaidade esfomeada e a mesquinharia de afetos e comiserações. Cada gole de cerveja sublinhava um pensamento conclusivo – os sábados sempre me tornavam bastante conclusivo. Mas não tinha a intenção de compartilhar minhas idéias. Gastava o tempo, apenas. Além do mais, de que adiantaria tentar compartilhar idéias? Cada pessoa daquele bar queria ser um orador entusiástico, prendendo a atenção de prováveis ouvintes com seus contos fantásticos e idéias"únicas"; escutar estava longe de nossa demanda, pois a historia de cada um era a mesma. Todos conheciam-na. Não havia nada de novo. Nem no bar, nem em qualquer outro lugar do mundo.
(...)
E foi com uma voz grave e resoluta que ele perturbou o prenunciado roteiro monótono daquela noite:
- Que à alma vazia seja ofertado o vinho!
(...)
- Incomodo?- perguntou arregalando os olhos...
- Não.
- Você não acha estranho como os limiares nos são tão despercebidos? Em dado momento, enquanto bebemos, sentimos um preenchimento quase real. A mente esvazia, as preocupações esvaziam-se, e tudo o que pensamos e sentimos torna-se confuso. Então vem o sono. E com ele, sonhos... Sabe o que eu acho? É uma coisa circular. O sonho nos leva a beber, mas a bebida nos devolve ao sonho..."
"Os Despertos"- Cássio Pantaleoni