Puisias & Afins

17 marzo, 2008

os despertos...

"(...) Acostumei-me a ver Isabela como a personagem principal. Fui seu contraponto em todos os momentos em que estivemos juntos: eu era a sombra, o vaso das flores, a margem do lago. Cabia a ela a cor e o sonho - eu era o rascunho.
Mas então tudo se transformou, e a vida passou a exigir-me o fôlego que nunca tive. Dei-me a vaguear sem rumo e entreguei meus sábados a um bar antigo, bebendo entre figuras desconhecidas. Convidado pela curiosidade,passei a freqüentá-lo habitualmente, e dali fiz meu palco e teatro, encenando um papel secundário e sem importância, em um inquebrantável silêncio engasgado.
Os sábados, para mim, sempre representaram o encerramento de uma etapa. O bar era um abrigo, uma passagem obrigatória que providenciava avaliar o fluxo das coisas. Era uma espécie de instrumento que permitia medir o tamanho da minha solidão. Além do mais, era o lugar perfeito para dar vazão à minha incansável necessidade de compreender-me. Tinha comigo uma visão clara das cicatrizes profundas que cada homem carregava, talhadas pela vaidade esfomeada e a mesquinharia de afetos e comiserações. Cada gole de cerveja sublinhava um pensamento conclusivo – os sábados sempre me tornavam bastante conclusivo. Mas não tinha a intenção de compartilhar minhas idéias. Gastava o tempo, apenas. Além do mais, de que adiantaria tentar compartilhar idéias? Cada pessoa daquele bar queria ser um orador entusiástico, prendendo a atenção de prováveis ouvintes com seus contos fantásticos e idéias"únicas"; escutar estava longe de nossa demanda, pois a historia de cada um era a mesma. Todos conheciam-na. Não havia nada de novo. Nem no bar, nem em qualquer outro lugar do mundo.

(...)

E foi com uma voz grave e resoluta que ele perturbou o prenunciado roteiro monótono daquela noite:
- Que à alma vazia seja ofertado o vinho!
(...)
- Incomodo?- perguntou arregalando os olhos...
- Não.
- Você não acha estranho como os limiares nos são tão despercebidos? Em dado momento, enquanto bebemos, sentimos um preenchimento quase real. A mente esvazia, as preocupações esvaziam-se, e tudo o que pensamos e sentimos torna-se confuso. Então vem o sono. E com ele, sonhos... Sabe o que eu acho? É uma coisa circular. O sonho nos leva a beber, mas a bebida nos devolve ao sonho..."

"Os Despertos"- Cássio Pantaleoni

11 marzo, 2008

carta de um amigo

Veja essa imagem do Mallarmé: Um cisne está preso num lago congelado da Europa. As pernas, o corpo imobilizados, a plumagem fatalmente prisioneira no grande bloco congelado. O pescoço e a cabeça estão também cobertos de neve, que continua caindo, mas estão livres no ar e podem receber alguma luz.
Com o pescoço e a cabeça ele conseguirá sacudir essa branca agonia, mas não o horror do chão congelado, onde a plumagem está imobilizada. Jamais conseguirá quebrar, com um golpe de asa bêbada, esse duro lago esquecido que mora sob a neve, nem a geleira transparente dos vôos que não fugiram. Você perguntará: - Por que ?. E eu prontamente respondo: Porque não cantamos a região onde viver, quando do inverno estéril resplandeceu o tédio.
A humanidade é escrava do consumismo, do industrialismo, e da baixeza da racionalidade econômica. Adora a imundice dos processos de produção e de consumo que lhe dão bens deliciosos e brilhantes. Foi ela que congelou o lago, a geografia e a sociologia que a envolve, um fantasma que dedicou seu brilho ao gelo, e se imobiliza ao sonho frio do desprezo que veste, no exílio inútil, o cisne.
Mora no Brasil um menino que é tão genial quanto o Mallarmé. Chamam ele de Chico. Ouço ao longe o lago dizendo para o cisne: Eu sou sua alma gêmea, sua fêmea, seu par, sua irmã. Eu sou seu incesto, seu jeito, seu gesto. Sou perfeito porque, igualzinho a você, eu não presto.

10 marzo, 2008

god

God is a concept,
By which we measure
Our pain.
I'll say it again.
God is a concept,
By which we measure
Our pain.

I don't believe in magic
I don't believe in I-Ching
I don't believe in Bible
I don't believe in Tarot
I don't believe in Hitler
I don't believe in Jesus
I don't believe in Kennedy
I don't believe in Buddha
I don't believe in Mantra
I don't believe in Gita
I don't believe in Yoga
I don't believe in Kings
I don't believe in Elvis
I don't believe in Zimmerman
I don't believe in Beatles

I just believe in me
Yoko and me
And that's reality.
The dream is over,
What can I say?
The dream is over
Yesterday
I was the dreamweaver,
But now I'm reborn.
I was the walrus,
But now I'm John.
And so dear friends,
You just have to carry on
The dream is over.

John Lennon

03 marzo, 2008

Poema em linha reta

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos.

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

Fernando Pessoa (Álvaro de Campos)